Afirmou em entrevista ao Diรกrio dos Aรงores, de 22 de Janeiro, que o livro O Lugar da Trindade e Outras Narrativas procura resgatar do esquecimento algumas memรณrias dos seus 20 anos insulares e doutros marcos importantes da sua vida. Qual das narrativas lhe deu mais prazer e nostalgia em escrever e qual foi a mais penosa?
ร verdade, procuro transportar nestas narrativas diversas memรณrias, sejam as vivenciadas por mim, sejam aquelas que construรญ a partir de conversas ou leituras que fui fazendo. Quando, numa das narrativas me refiro ao Jorge Piuza, e embora haja nesse texto grande componente ficcional, o enredo foi vivido comigo por perto. Estive lado-a-lado dos factos que ali vรชm descritos e lamento profundamente o desfecho da histรณria daquele โmenino de ouroโ. Por outro lado, numa outra narrativa รฉ aflorada a temรกtica da baleaรงรฃo a que, naturalmente, jรก nรฃo assisti. Nรฃo tinha ainda dez anos quando se apanhou o รบltimo cachalote nos Aรงores, o que nรฃo impediu de me apaixonar pela temรกtica, sobretudo, depois de ler Dias de Melo e outros, que tรฃo bem escreveram aquela importante atividade para a regiรฃo e mormente para a ilha do Pico. Criaram em mim imagens do que terรก sido a baleaรงรฃo, imagens essas que procurei, de alguma forma, corporizar nessa narrativa. O texto que mais prazer me deu escrever foi o que abre a obra โ O Comodato โ nรฃo apenas pelo mรณbil que esteve na sua origem, mas tambรฉm porque nele agrego de uma forma mais ou menos harmoniosa, muito do que vejo ser a existรชncia aรงoriana. Eu vivo num centro urbano, mas trabalho num espaรงo rural, e essa dicotomia garante-me uma abrangรชncia de vivรชncias muito interessante, ao ponto de perceber que hรก ainda um fosso muito grande entre o espaรงo urbano e o espaรงo rural, sobretudo em termos de acesso ร cultura, o que influi, definitivamente, na forma como as pessoas olham a vida e sobre as expetativas que tรชm sobre ela. Em termos de nostalgia e pesar, reporto-me, naturalmente, ร s narrativas que tรชm a toxicodependรชncia como pano de fundo: Jorge Salimo Piuza, Fรณrmula C21H23NO5, porque cada uma veicula a histรณria desgraรงada de uma pessoa amiga que se perdeu, irremediavelmente, nesse mundo intrujรฃo, dominado pela droga e suas consequรชncias nefastas.

O Telmo costuma opinar acerca dos livros que vรฃo sendo publicados nos Aรงores e afirma, inclusive, que a nossa literatura โestรก bem e recomenda-seโ. Como espera que este seu livro seja recebido pelo pรบblico e pela crรญtica?
A nossa literatura aรงoriana vive um momento muito bom. Nรฃo tendo quaisquer dados que o garantam, creio que nunca se terรฃo publicado tantos autores e com tanta qualidade. Acredito que, pelo menos para os anos vindouros, teremos o futuro assegurado; note-se o labor e virtuosismo de autores como Paula de Sousa Lima, Nuno Costa Santos, Joel Neto, Diogo Ourique, Leonardo, Maria Joรฃo Ruivo, Henrique Levy, Joรฃo Pedro Porto, Maria Brandรฃo, Pedro Almeida Maia, Leonor Sampaio Silva e tantos outros. Recordemos, tambรฉm, os mais experientes e que tรฃo bons desempenhos tรชm mantido: Urbano Bettencourt, Tomaz Vieira, Onรฉsimo T. Almeida, Vamberto Freitas, Vasco Pereira da Costa… Tenhamos, pois, confianรงa no futuro, ele serรก sorridente! Relativamente ร forma como as pessoas irรฃo receber este O Lugar da Trindade e Outras Narrativas, รฉ uma perfeita incรณgnita. Estou ciente de que jรก nรฃo publico em nome prรณprio desde 2012, pelo que tudo pode acontecer. As crรญticas que me chegaram das รบltimas participaรงรตes em volumes coletivos foram muito agradรกveis, pelo que parto com alguma confianรงa. Naturalmente, รฉ meu grande desejo que as pessoas leiam o livro e o apreciem. Gosto, inclusivamente, de solicitar o feedback ao leitor, porque sei que a sua opiniรฃo รฉ fundamental para quem escreve. Neste caso, sรฃo dez narrativas, umas inรฉditas outras em reediรงรฃo, mas sรฃo, antes de tudo mais, dez histรณrias que quis partilhar com os leitores, combinando a realidade com a ficรงรฃo, tudo em doses aceitรกveis. Espero que gostem, pelo menos de algumas!
Para si, um bom livro tem de ter uma boa histรณria, assente na verossimilidade de um tempo e de um espaรงo e servida por personagens fortes e credรญveis. Quais livros mais lhe enchem a alma, preenchendo todos estes requisitos?
Quando hรก esmero na concretizaรงรฃo das categorias da narrativa, por norma, o resultado รฉ promissor. Hรก outras condicionantes de igual importรขncia, mas referi-me a essas por serem as que mais relevo na leitura recreativa. Nesse sentido, e sabendo que qualquer lista pecarรก sempre por defeito, permitam-me escudar-me nos grandes tรญtulos universais: O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, Cem Anos de Solidรฃo, de Gabriel Garcรญa Mรกrquez, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde ou Se Isto ร Um Homem, de Primo Levi. No entanto, reportando-me ร literatura portuguesa, muito recentemente, o talento deu ao mundo dois romances fabulosos que, com toda a legitimidade, integrarรฃo as listas de grandes sucessos literรกrios: Rua de Paris em Dia de Chuva, de Isabel Rio Novo e A Escrava Aรงoriana, de Pedro Almeida Maia.
Hรก um autor, aรงoriano ou nรฃo, que admire particularmente?
Claro que sim. ร natural que a sensibilidade do leitor se aproxime mais de um ou de outro autor, atรฉ pelas diferentes formas de abordagem a determinadas temรกticas. Pessoalmente, e no que se refere ร literatura aรงoriana, nรฃo faรงo qualquer questรฃo de encobrir a minha admiraรงรฃo profunda pela obra de Daniel de Sรก, nรฃo apenas por ter sido o autor que me abriu as portas ร โilharizaรงรฃoโ literรกria, mas tambรฉm, e sobretudo, pelas temรกticas recorrentes na sua obra: a religiosidade ou o repetido padecimento do povo Judeu, por representarem dois temas que me marcam profundamente.
Sei que hรก mais projectos de escrita em cima da mesa, mas ainda hรก algum que sonha em realizar?
Tenho concluรญdo um projeto completamente diferente deste, mas que me conferiu especial gozo e encetei jรก a escrita do que poderรก vir a ser um conjunto de contos. No รขmbito do texto narrativo, jรก experimentei a crรณnica, o conto, a novela. Dir-me-รฃo que me falta o romance. Todavia, o que gosto mesmo รฉ de contar histรณrias, sendo que a forma como elas chegam nรฃo รฉ o mais importante. Gosto de experimentar, por isso, num futuro ainda distante, talvez enverede pelo romance.
Na sua opiniรฃo, quais sรฃo as maiores qualidades da literatura aรงoriana e que a fazem distanciar-se das demais, e como se deveria fomentar a sua leitura?
Esta รฉ uma pergunta perigosa, mas muito interessante e arrojada. As maiores qualidades da literatura aรงoriana tรชm de ser exatamente as mesmas daquelas reconhecidas em literaturas de outras geografias. Paradoxalmente, sรฃo essas que a afasta e diferencia das demais, assumindo-se com uma voz prรณpria e diferenciadora. Nรฃo devemos deixar de escrever aquilo que รฉ nosso, mas temos de revelar a capacidade (e talvez seja esse o maior desafio) de integrar todas estas realidades, que nos sรฃo prรณximas e familiares, num contexto mais lato e que se quer universal!
O Joel Neto granjeou amplamente esse feito com o seu Meridiano 28, uma obra singular, muito apreciada por todos os leitores. Foi tambรฉm por isso que esse livro se tornou num marco da literatura portuguesa! No que se refere ao fomento da leitura de literatura aรงoriana, penso que estรก reservado aos professores de portuguรชs um papel determinante: tรชm de ter a coragem de pegar nestes autores, lรช-los e depois trabalhar os respetivos trechos em contexto de sala de aula. Bem sei que hรก um rol de autores e textos a ler a cada ano letivo e o tempo nรฃo estica, nem os alunos pedem mais e mais, por isso, julgo que hรก, neste particular, a necessidade de intervenรงรฃo da Tutela: houvesse um contributo mais esclarecido da Secretaria Regional da Educaรงรฃo e Assuntos Culturais, talvez fรดssemos um pouco mais longe e, melhor do que tudo, um pouco mais seguros.
A todos boas leituras e o desejo que possam apreciar este O Lugar da Trindade e Outras Narrativas.
Entrevista elaborada por Ana Oliveira
Assessora de Comunicaรงรฃo da Publiรงor / Letras Lavadas
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