FRENTE E VERSO – CONTOS ACERCA DO MAL • POEMAS ACERCA DA MÁGOA.
«Estava ela no quarto de banho, lavara o cabelo, começara a enxugá-lo, entrou ele, olhou-a com o rancor costumeiro, estava a remastigar a alvura do oitavo filho, não só alvo como loiro e de olhos verdes, agarrou na navalha da barba, ela cedeu-lhe espaço, e, súbita e abruptamente, ele agarrou-lhe na mão direita, destacou-lhe o indicador, disse: nunca mais me vais apontar esse dedo, nunca mais, ouviste? garanto. Ela ainda murmurou que jamais lhe apontara o indicador, era verdade, mas devia ele sentir o dedo dela a indicar-lhe os muitos maus-tratos, a desafeição pelos filhos, os olhos dele tomaram um brilho mau, ela tentou encolher-se, com lesteza ele cortou-lhe o indicador direito, depois deixou cair a navalha».
Este é um livro que pede para ser lido duas vezes, que termina duas vezes, que oferece duas experiências de leitura literária – de poemas e de contos. E que oscila entre os dois maiores temas da arte de todos os tempos – Eros e Tanatos, o amor e a morte, e temáticas afins.
Os contos expõem o fim das idealizações, a dessacralização de figuras sacralizadas por convenções sociais e por uma certa literatura popular. Frente e Verso ousa mostrar a frente e o verso do estereótipo, desmontando-o para revelar com crueza a insensibilidade, o desamor, a violência doméstica, a pedofilia, a ganância, os tabus, a criminalidade.
Os “poemas acerca da mágoa” também nos oferecem epígrafes eloquentes. Tal como a parte dedicada aos contos, a da poesia está estruturada em “Livros”, designação que recorda a estrutura do Livro dos livros, a Bíblia, bem como de muitas obras clássicas. Ajusta-se, assim, a parte dos poemas ao papel de belo reverso da prosa. Enquanto a prosa se ocupou do mal, a poesia põe-nos ante a mágoa (forma inferior de mal) e a possibilidade de redenção. Persistem indícios dos espectros que assolam a narrativa, mas esta é uma dor trágica, que contém dignidade, patente no amor e na poesia.
«Ao reaparecer com Frente e Verso, Paula de Sousa Lima reafirma o lugar da sua voz distintiva no panorama literário português, simultaneamente enquanto poeta e ficcionista. À semelhança do que já nos habituou em publicações anteriores, a autora regressa às bases da cultura ocidental, concretamente ao duplo legado da antiguidade clássica e da tradição judaico-cristã, consolidando um dos traços inconfundíveis do seu estilo. Estes regressos têm o mérito de nos convidarem a revisitar os mitos fundadores da cultura europeia e de nos manterem cientes da influência de um passado que deixou arquétipos que continuam a impregnar o nosso imaginário artístico e intelectual.
Outro traço recorrente da escrita de Paula de Sousa Lima que ressurge é a interpelação recorrente aos espectros que assombram a nossa autoimagem como seres perfeitos e felizes: a dor e o mal. Desde os primeiros estímulos – refiro-me à capa e ao título – o livro prepara-nos para um encontro com os supracitados espectros.
Este é um livro que pede para ser lido duas vezes, que termina duas vezes, que oferece duas experiências de leitura literária – de poemas e de contos. E que oscila entre os dois maiores temas da arte de todos os tempos – Eros e Tanatos, o amor e a morte, e temáticas afins.
A escolha criteriosa das epígrafes, da estante de livros que alimenta a escrita da autora, põe-nos em diálogo com os clássicos, os textos sagrados, os grandes nomes da literatura. A escolha das citações a anteceder cada secção confere equilíbrio ao livro e compõe um bordado com um efeito de opulência.
Reflexão é uma palavra de ordem na nossa experiência de leitura. A divisão em secções, tanto para a prosa como para a poesia, exibe um pensamento disciplinado e ordenado, que cresceu sabendo para onde se queria dirigir: para a complementaridade de dois modos literários (o lírico e o narrativo); para a dualidade de perspetivas sobre o mal e a mágoa; para o diálogo com o passado e para a polifonia literária».